Publicado em 21 de maio de 2004 – Portal No Mínimo
Por Timóteo Lopes
Divulgação
Sistema ‘double safe’ em portaria
de São Paulo: como nos bancos
Sistema ‘double safe’ em portaria de São Paulo: como nos bancosAs muralhas estão cedendo. Os moradores de bairros de classes média e alta do Rio de Janeiro e São Paulo estão vendo ruir suas cidadelas, cada vez mais assediadas pelo terror dos assaltos e assaltantes, mas, mesmo assim, continuam investindo em projetos arquitetônicos e imobiliários que privilegiam a segurança. Duas pesquisas de universidades fluminenses apontam essas tendências aparentemente contraditórias, pautadas pelo medo e pela busca de proteção. Enquanto estudantes da Universidade Federal Fluminense (UFF), de Niterói, constatam que nas zonas nobres das duas grandes cidades há uma inclinação para uma estética densa que faz lembrar e até ressuscita elementos da arquitetura medieval, a Universidade Cândido Mendes conclui uma pesquisa com resultados e números que justificam o medo.
O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da universidade comprovou na semana passada que, em seis anos, o número de assaltos a residências na cidade do Rio de Janeiro aumentou 113%. “É assustador”, diz coordenadora da pesquisa, a economista Leonarda Musumeci. “Ninguém está seguro dentro de sua própria casa e o pesadelo não vai acabar tão cedo.” Alguns números: em 1998 foram registrados 903 assaltos a residências; 1333 em 1999; 1409 em 2000; 1425 em 2001; 1751 em 2002 e 1927 em 2003. Em São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública não fornece números e nem informa no seu site oficial esse tipo de ocorrência. Mas o sonho de viver em lugar seguro continua: “Na ânsia de se resguardar, as pessoas estão se encarcerando e a arquitetura que se faz hoje explicita o medo da violência”, afirma Sonia Ferraz, que coordenou a pesquisa da UFF. “Foi-se o tempo em que era possível pedir e conseguir uma xícara de açúcar com o vizinho.”
Semelhança com presídios
Durante dois anos, Sônia Ferraz e uma turma de seus alunos do curso de arquitetura fizeram um levantamento fotográfico em bairros como Morumbi, Moema, Higienópolis e Pacaembu, em São Paulo, mais Ipanema, Leblon, Jardim Botânico e Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Hoje, têm um arquivo de cerca de mil fotos de casas e edifícios. Embora pareçam diferentes, quase todos os prédios guardam muitas semelhanças: num mesmo espaço, convivem o moderno e o medieval. Muralhas. Grades, seteiras, fossos, lanças e arames farpados que remetem a uma imagem medieval complementam-se com equipamentos de alta tecnologia, como câmeras, sensores infravermelhos e torres blindadas. “Estamos vivendo uma época de super-segregação, de auto-exclusão, e tantas defesas alteram substancialmente as relações humanas”, teoriza Sônia Ferraz. “Algumas construções se assemelham a presídios de segurança máxima.”
Nesse cenário de violência e medo, o estudo dos alunos da UFF conclui que a insegurança desenha um novo padrão funcional e formal de arquitetura. Uma significativa parte do mercado imobiliário, da indústria de equipamentos e materiais de segurança cresce lado a lado com os índices de violência. De acordo com cálculos da Fundação Getúlio Vargas, divulgados no final de 2003, são gastos no Brasil cerca de R$ 100 bilhões por ano com segurança privada. “Quem aluga ou compra um imóvel quer saber em primeiro lugar da segurança”, confirma George Eduardo Masset, presidente da Associação Brasileira de Administradoras de Imóveis (Abadi). “O pânico é geral.”
A média de roubos a residências é de quatro por dia no Rio de Janeiro, mas a própria polícia admite que a estatística oficial pode estar defasada, já que nem todos os casos são notificados pelas vítimas. Foi o que fez, ou melhor, não fez o ator Thiago Lacerda na semana passada, quando teria sido uma das vítimas do assalto que um bando de oito homens fez ao edifício Chevalier Noir, no bairro Alto Leblon, na zona sul do Rio. Teriam levado jóias e um telefone celular. Se aconteceu, o constrangimento foi menor do que o sofrido pelo diretor Wolf Maia que, em 28 de dezembro passado, teve sua casa invadida por três homens armados de pistolas e revólver. O diretor da Rede Globo, uma filha e oito amigos foram mantidos como reféns por várias horas. “Nossa vida se transformou numa rotina de sobressaltos”, lamenta Ana Simas, presidente da Associação de Moradores da Fonte da Saudade. “O único jeito é nos entrincheirar ainda mais.”
E é isso que os moradores estão fazendo. Das 17 ruas do bairro, seis já foram praticamente privatizadas – com cancela, guarita e guardas particulares 24 horas por dia – e, a partir da próxima semana, 43 condomínios passam a ser interligados por rádio com um batalhão da Polícia Militar e com a delegacia do bairro. “As ruas das grandes e médias cidades deixaram de ser lugares do encontro, do compartilhamento e, sinônimas de perigo, castram a cidadania”, teoriza o sociólogo Inácio Cano, que dirige o Laboratório de Analise da Violência na Universidade Estadual do Rio de Janeiro(UERJ). “Estamos vendo o outro, o próximo, como um inimigo e falta de convivência social aumenta ainda mais o nosso medo.”
Perigo dentro dos muros
Mas a própria arquitetura do medo ou da insegurança passa por um período de transição. A instalação de equipamentos, grades, cacos de vidro ou arames farpados, iniciada improvisadamente na década de 1990, hoje está incorporada aos projetos arquitetônicos de novas edificações. “A arquitetura moderna não desperta mais emoções, está perdendo a dimensão artística”, afirma Gustavo Seixas Guimarães, aluno do nono período da UFF que, nos últimos dois anos, circulou com uma máquina fotográfica pelos bairros nobres do Rio e São Paulo captando as transformações. “Não é a arquitetura dos meus sonhos, e sim o padrão estético que a ética do nosso tempo impõe.” Tem suas razões.
Ficou para trás a época em que as edificações eram vitrines para que os arquitetos demonstrassem seu talento experimentando novas formas, cores, volumes, espaços, texturas, materiais e técnicas de construção. Entre as mil fotografias que os estudantes da UFF recolheram, é possível destacar prédios concebidos por ícones da arquitetura brasileira como Paulo Casé e MM Roberto, no Rio de Janeiro, ou Vilanova Artigas, Ruy Ohtake, Paulo Mendes da Rocha e Joaquim Guedes, em São Paulo. Todas as suas obras foram adulteradas em favor da busca de segurança. “Os conceitos de permeabilidade, transparência, luminosidade e interação que havia nos projetos iniciais foram encobertos por grades, lanças e arames farpados”, diz Danielly Brondani, aluna do oitavo período. “Hoje as pessoas querem comprar proteção”, emenda seu colega Gustavo Jasmim de Matos.
O item segurança é o bordão mais utilizado pelos empreendimentos imobiliários em anúncios de letras garrafais. “A cultura do medo foi sendo gradativamente introduzida como elemento para atrair o comprador de um imóvel”, declara a arquiteta Sonia Ferraz. “Ao invés de se encarcerar em sua própria casa, a sociedade tem de se mobilizar e exigir dos governos a solução”, emenda o sociólogo Roberto Kant de Lima, que coordena na UFF o primeiro curso de graduação universitária de segurança pública. Ele faz outra observação. “Alguns condomínios são dotados da mais avançada tecnologia de segurança, mas esquecem o fundamental que é o treinamento de porteiros e vigias que irão operar os equipamentos.”
A verdade, também, é que não há mais fortalezas inexpugnáveis. Até abril, os moradores do Condomínio Summer Dream – construído no final dos anos 90, com dois prédios de 27 andares e 216 apartamentos – acreditavam viver num paraíso, livres e salvos da praga da violência. Os pesquisadores da UFF que estiveram na Barra da Tijuca não hesitaram em defini-lo como uma versão moderna de um castelo medieval. A única entrada do Summer Dream é cercada por um muro de mais de três metros de altura. Nos fundos e nas laterais, o condomínio divide um muro com cerca eletrificada com outros dois. Mas o que impressiona é o enorme e inóspito fosso que impossibilita a chegada de qualquer inimigo externo. Não precisava. Na noite de um domingo de abril, um morador esfaqueou outros dois – pai e filho – num episódio que ganhou as primeiras páginas dos jornais cariocas em forma de tragédia. O sonho de paz do Summer Dream se esfarelou. A violência não precisou vencer o fosso e os muros para entrar. Ela já morava lá dentro.