NUNES, Geraldo e FERRAZ, Sônia Taddei. 174, Central/ Gávea: a midia propõe novas representações para a “Cidade Maravilhosa.” RBSE, v.1, n.1, pp.44-60, João Pessoa, GREM, abril de 2002.
ARTIGO
ISSN 1676-8965
174, CENTRAL/GÁVEA: a midia propõe novo
roteiro de leitura da “Cidade Maravilhosa”
Prof. Dr.Geraldo Nunes
Profª, Drª. Sonia Maria Taddei Ferraz
“…jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles.”
(Ítalo Calvino)
O Rio de Janeiro teve a sua identidade como “Cidade Maravilhosa” historicamente construída ao longo de quase um século. Esta é a imagem que está consolidada em diversas músicas da MPB , em folders de propaganda turística, e que sempre encantou o mundo e encheu de orgulho os seus cidadãos.
Nossa proposta aponta para a possibilidade de consolidação de novas representações desta cidade.
Com o auxílio de técnicas de segmentação, calcadas em modelos de análise de discurso, este trabalho aborda os processos de semantização no conjunto da imprensa carioca (áudio visual, radiofônica e escrita ), do seqüestro do ônibus da linha 174 – Central/Gávea, no Jardim Botânico – Rio de Janeiro, no dia 12 de junho de 2000, e suas repercussões no quadro do reconhecimento social da consolidação de uma nova imagem da cidade.
Assim, ao analisar o processo de semantização do acontecimento pela mídia, foi possível constatar que a imprensa propôs um método de leitura alternativo da Cidade, orientado, não pelo sítios turísticos tradicionais, mas [fim da pág.44] pelas noções de violência, medo pânico e terror.
Diversos recursos ilustrativos foram utilizados para identificar novas referências, como fotos on line, noticiário de rádio, tv, jornais e revistas, charges e capas dos periódicos, no período entre 12/06 e 02/07 de 2000. A opção de trabalhar com amostra diversificada foi intencional e tem como objetivo, não o efeito comprobatório ou estatístico, mas a revelação da diversidade de informações e estímulos a que o cidadão está exposto para construir e alterar imagens.
Como suporte para o relato do acontecimento, a matéria de primeira página do jornal O DIA, de 13/06/2000, reproduzida abaixo, pareceu o resumo mais preciso, publicado na data:
Se foi o acaso que nos levou a ligar a TV numa tarde de segunda-feira para ver e ouvir as notícias do dia, em um dos canais informativos de TV por assinatura, ou de TV aberta, certamente não foi o acaso que conduziu, nesta mesma segunda-feira, alguns passageiros – dos mais de 7 milhões, no Rio de Janeiro, que utilizam diariamente o ônibus como meio de transporte – a embarcarem em uma viatura da linha 174 -CENTRAL/GÁVEA.
O itinerário desta linha é emoldurado por alguns dos recantos de maior reconhecimento público, constituídos pelos lugares mais aprazíveis e por pontos historicamente mais representativos da cidade. Com vista para o Cristo Redentor no Corcovado, o coletivo passa pelos bairros da Gávea, Jardim Botânico, Praia de Botafogo, Centro, Estação Ferroviária Central do Brasil; margeia a Baía de Guanabara com ampla visão da enseada de [fim da pág. 45] Botafogo, Pão de Açúcar, Museu de Arte Moderna, Outeiro da Glória, Praça Paris, Passeio Público, entre outros.
Naquele 12 de junho, às 14:20h, o trajeto do 174 foi brutalmente interrompido, proporcionando à sociedade brasileira o espetáculo inédito, ao vivo e a cores, de mais um trágico episódio da violência praticada nos principais centros urbanos do País.
Nesse dia, surgiram: um sobrevivente da “Chacina da Candelária” , que tinha naquela época o apelido de “Mancha” (foto abaixo) , mobilizando um forte aparato policial e as câmeras de TV, oferecendo um show audiovisual da “Vida Como Ela É” no Rio de Janeiro, com mais de quatro horas de duração.
Durante o show, para os (tele) espectadores, mesmo cientes de assistirem a cenas reais, a transmissão pela TV revestia o acontecimento de uma certa dimensão ficcional característica de filmes do gênero de ação policial. Como num roteiro que era construído à medida em que se assistia a evolução do acontecimento, seguindo uma lógica já conhecida em episódios de seqüestro. As cenas de violência dentro do ônibus, embora muito fortes, não constituíam grande novidade, como pode ser observado nas três fotos abaixo, que mostram o seqüestrador ameaçando um refém, pessoas apavoradas dentro do ônibus e, por último, policial e seqüestrador em aparente negociação:
No desenrolar das cenas, surpreendente foi o desfecho que, rompendo a própria lógica da violência esperada pelos (tele)espectadores, mostra o “Mancha” saindo do ônibus, tendo à sua frente uma refém que é então atingida pela própria polícia, deixando o seqüestrador ileso e construindo, assim, um inesperado final para o filme que todos assistiam: [fim da pág. 46]
Durante o noticiário dos dias subseqüentes, diversos títulos reforçavam esta idéia do filme de gênero policial, como, por exemplo:
“Inferno no 174” (Extra, 13/06/2000, 1ªp.)
“Dois passados e um mesmo destino” (Rev. Época,19/06/2000 p.38) “Sem saída” (Revista Istoé, 21/06/2000, p.26)
“O despertar de um pesadelo” (JB,14/06/2000, p.24) [fim da pág. 47]
No mesmo noticiário, muitas fotos reproduziram seqüências televisivas, sendo capazes de dar uma idéia das principais cenas testemunhadas, que expunham a dor, o pavor e a derrota de quem as viveu. Da maneira como foram publicadas, eram também capazes de reforçar a dimensão fílmica, do mesmo gênero, com que o acontecimento foi [fim da pág. 51] apresentado aos telespectadores, já que utilizaram amplamente as seqüências fotográficas em estilo fotograma, como nos exemplos a seguir:
Em outro campo mediático, o texto radiofônico, apresentado na radio CBN pelo repórter Luiz André Ferreira no dia 13/06, assim como os relatos e notícias das outras mídias, reforçava esta mesma visão fílmica, do ocorrido: [fim da pág. 48]
“A história parece roteiro de um filme de terror, porém foi mais um capítulo da violência nas grandes cidades. Dizendo-se possuído pelo Diabo, encenando uma execução, contando inclusive com a cumplicidade forçada de onze reféns, o seqüestrador Sergio atraiu a atenção de todo o País, por 4 horas e meia. Usou como ingredientes, para chamar a atenção, cenas de blefe, mensagens escritas com batom nos vidros, mulheres agarradas pelos cabelos, extintores detonados. Dizia que não tinha nada a temer desde que teve a mãe decapitada pelo grupo criminoso Comando Vermelho: o cenário de uma história de terror, no ônibus da linha 174 – Gávea/ Central do Brasil. Provando que a realidade é mais cruel do que a ficção, quando parecia próximo o desfecho, o final não foi feliz para o próprio Sérgio e a passageira Geisa Gonçalves: eles morreram quando saíam do ônibus”.
Durante as 4 horas e 20 minutos, o próprio seqüestrador se encarregou de alertar a todos gritando “isto não é um filme!”, o que acabava produzindo um reforço à idéia de um roteiro fílmico. A própria necessidade de lembrar a realidade dos fatos, revelava o quanto eles se assemelhavam à ficção.
É possível suspeitar que a própria performance do seqüestrador tenha sido alterada em função da presença das câmeras de TV. As simulações sucessivas, como, por exemplo, da morte de uma refém e do desespero dos demais, poderiam, no caso de uma platéia ampliada pela tele- transmissão, provocar uma comoção social. Certamente, isto não ocorreria se encenado somente diante da polícia e de alguns transeuntes.
No momento da transmissão, os (tele) espectadores assistiam à seqüência como a um filme mesclado por estratégias novelescas que, além da comoção, produzia familiaridade, e provocava um sem número de sentimentos coletivos, como a piedade, a indignação, o sobressalto, o medo, a inquietação, a ansiedade, a angústia, a impotência e a derrota. [fim da pág. 49]
Toda essa mobilização se sustentava na construção de uma identidade entre (tele) espectadores, passageiros em potencial, e seqüestrados: todos enquanto elementos de uma vasta categoria de milhões de passageiros de transportes coletivos no Rio. Foi assim que os sentimentos de identidade e desolidariedade se manifestaram, imediatamente, entre os milhões de (tele) espectadores – passageiros “de fora” do “174”, e os seqüestrados – passageiros “de dentro” daquele ônibus .
Nesta relação, o noticiário televisivo trouxe reforço. Embora considerando que suas imagens sejam sempre dominantes na produção dos sentidos, mesmo que ancoradas pelos relatos verbais, neste acontecimento houve uma comovida condução verbal, às vezes capaz de se sobrepor às imagens, provocando um “emaranhado emocional” e dificultando a observação e compreensão racional e lógica do que acontecia. Assim, a repórter da Globo News, Luana Belmonte, certamente tomada de surpresa, preenchia o seu relato, que ancorava os telespectadores, com observações como: “Ai meu Deus! Meu Deus! O que esta mulher está passando!” e “Esse homem, esse bandido, a gente tem a impressão de que ele não está bem…”. Manifestando impotência e fragilidade, o relato contaminava também o frágil e impotente telespectador que, enquanto partícipe “voyeur”, não podia interferir, embora se sentisse como se estivesse ali dentro”, naquele lugar.
Ao contrário do que acontece, em geral, em circunstâncias semelhantes, onde o distanciamento físico do (tele) espectador, em relação ao acontecimento transmitido impõe um distanciamento emocional, ali, a maioria, como cariocas, estava, na mesma cidade, assistindo à um espetáculo cujo cenário lhe é absolutamente familiar. Diferente dos atos de violência habitualmente noticiados e que ocorrem em lugares de uso restrito a determinados grupos sociais, sejam lugares privados ou públicos, portanto, passíveis de serem reconhecidos apenas por alguns segmentos sociais, o ônibus é, definitivamente, ” lugar ” de praticamente todos os cariocas. Para eles, a representação construída a partir das imagens que assistiam, consolidava o medo e a angústia diários.
Como somatório de todos aqueles sentimentos, os passageiros reféns acabaram se tornando também como que familiares de todos os (tele) espectadores, como afirmou um cronista de um dos cotidianos cariocas: [fim da pág. 50] “A televisão transformou cada passageiro do 174 num amigo. Senti a morte de Janaína Lopes Neves como a de alguém muito próximo. Comemorei sua ressurreição como a de um parente querido.”
O imenso grupo de (tele) espectadores “de fora”, poderia ser ampliado ainda pelos que já foram visitantes ou turistas (ou tiveram o desejo de ser), também capazes de reconhecer, de longe, o Rio: uma das cidades mais conhecidas do mundo, e que mais oferecem referências visuais capazes de garantir o seu reconhecimento mesmo à distância, como por exemplo, a Praia de Copacabana, o Pão de Açúcar e, principalmente, o morro do Corcovado ostentando o
Cristo Redentor:
Não se tratava, portanto, de um espaço estranho à maioria dos que assistiam à TV e que, nos dias subseqüentes, continuou a ler e assistir os desdobramentos daquela tragédia.
Nesta perspectiva, a cidade se apresentava como o espaço de todos, onde qualquer um poderia estar naquele momento e naquele lugar. Era um espaço – um sem número de trajetos, utilizados cotidianamente por mais de 80% da população (estudante, trabalhadora e flutuante), cruzando a cidade em um imenso emaranhado de direções. Naquele momento, não era preciso imaginação para se sentir vinculado ao cenário e para superar os obstáculos da distância. Todos estavam lá, já que a transmissão funcionava como uma inversão do papel que se atribui em geral a TV, de trazer imagens do exterior para o interior das casas e que, naquele momento, transportava os (tele) espectadores para o local do acontecimento. Não havia, portanto, necessidade de ativar dimensões estéticas, morais ou culturais de um acontecimento distante .
A transmissão televisiva capturou o leitor, colocando-o no centro das alterações das representações sociais da cidade, que o acontecimento foi capaz de provocar.
Consubstanciando a construção da proximidade dos (tele) espectadores, a capa da revista ISTOÉ, de 21/06/2000, contém uma referência gráfica a uma das cenas de maior dramaticidade, em que o seqüestrador usou recursos de eficiente efeito mediático, obrigando uma das reféns a escrever um texto de alerta, no vidro do ônibus, fazendo uso de um batom, como pode ser constatado a partir das fotos a seguir:
Ao escolher a cena para ativar o reconhecimento do acontecimento e optar por uma unidade lexical para contextualizá-lo (MEDO), a encenação fotográfica da revista consolida uma determinada imagem, tanto do acontecimento, como da cidade, colocando como que um espelho, refletindo um determinado segmento social que usa as linhas de ônibus da zona sul carioca, e que é, provavelmente, publico leitor da revista. De certa forma, esta imagem constrói a idéia da possibilidade generalizada dos seqüestros a ônibus, colocando todos os usuários de sobressalto, o tempo todo. No entanto, acabou também legitimando uma imagem de violência e medo destinada principalmente a passageiros cariocas da zona sul. Percebe-se facilmente que a foto é composta, predominantemente, por jovens e idosos saudáveis, brancos e bem vestidos.
Como a revista citada acima, todas as revistas semanais e todos os jornais diários encheram suas páginas com o acontecimento a partir do dia seguinte. Todos relataram a tragédia e foram pródigos em análises, [fim da pág. 52] prospecções e protestos indignados, nos mais variados sub temas.
Da mesma maneira, como pode ser constatado a seguir, a capa da revista VEJA RIO, de 21/06, articulada em torno do tema da “PARANÓIA”, traz a mesma idéia da construção da imagem do “MEDO”, para os passageiros de transportes coletivos, já trazida pela ISTOÉ:
Como desdobramento, considerando o quadro social se que se configurou a partir de todo esse noticiário e dos tantos sentidos propostos, a imprensa passou, então, a se imbuir de um papel pedagógico, de auxílio ao cidadão, reorientando-o na leitura da cidade que emergia do acontecimento.
De um lado, por exemplo, o jornal O GLOBO, a partir de uma diferente proposta de leitura, sugere o quanto a totalidade da vida urbana pode ser marcada por acontecimentos dessa natureza. Assim, publica uma matéria, de 13/06, mostrando como seus desdobramentos modificaram a rotina em toda a cidade, atingindo e alterando a vida de tantos cidadãos, em tantos aspectos importantes de suas vidas: “A cidade pára para acompanhar o drama”. A matéria mostrou como, naquele momento, espaços públicos se tornaram lugares de reunião e como ruas de diversos bairros foram ocupadas e engarrafadas; descreveu a multidão que permaneceu no local do seqüestro e entrevistou transeuntes trazendo [fim da pág. 53] opiniões sobre diversas questões; qualificou a rua como praça de guerra e como área de lazer; apontou aqueles que se aproveitaram da aglomeração para fazer protesto e dos tumultos e pequenos furtos, em diversos pontos da cidade, enquanto a maioria se distraía como mega show. Esta notícia, sem dúvida, trouxe inúmeros elementos capazes de ampliar os efeitos de reconhecimento da imagem da cidade, como apontam os trechos da matéria, reproduzidos abaixo:
“A cidade parou ontem para acompanhar o drama dos passageiros do ônibus da linha 174… … No Centro, as pessoas se concentraram em frente às TVs das lojas de eletrodomésticos para acompanhar as negociações…. Na Rua Jardim Botânico, uma pequena multidão de curiosos se aglomerou… … idosos, adultos, jovens e crianças … …O trânsito foi interrompido …o que provocou engarrafamentos no Humaitá e em Botafogo. O tráfego foi desviado … … muitos que esperavam na rua o fim do seqüestro… …. a rua virou uma praça de guerra. A área isolada foi invadida … …e a multidão queria linchar o bandido… … Entre os muitos curiosos – moradores e pessoas que passavam pelo local – havia um grupo de moças que se destacava pelo desespero … …Os adolescentes … … transformaram a rua interditada em uma área de lazer, onde andaram de skate e bicicleta. … …< Este asfalto é ótimo> – disse um estudante de 15 anos. … … Houve também um homem que aproveitou a multidão para exibir um cartaz de protesto… … A cada vez que saía um tiro ou a situação ficava mais tensa, as pessoas se abaixavam e corriam pela rua… … Durante 4h30m, centenas de populares se concentraram nas portas das lojas de eletrodomésticos … … no Centro, para acompanhar pela TV o drama dos reféns. … … Os lojistas, por várias vezes, desligaram os televisores porque bandidos aproveitavam a confusão nas lojas para furtar mercadorias. … … – disse… gerente de uma loja… …Na Central do Brasil, [fim da pág. 54] trocadores, motoristas e passageiros acompanhavam o caso pelo rádio, principalmente os da linha 174 (Nossa linha, em geral, é tranqüila. Acho que foi um caso isolado.)”
De outro lado, aproveitando os desdobramentos do noticiário que mostraram a polícia inepta, a fragilidade e a insegurança na cidade e a impossibilidade da proteção, alguns periódicos assumiram a proteção e orientação do cidadão desamparado. Esta estratégia de aproximação com leitor se configura através de um conjunto de matérias articuladas em torno da idéia de que “com uma polícia incompetente, para lhe garantir segurança, você mesmo deve se proteger” e, para isso, ela (imprensa) “vai lhe ajudar”.
Nesta perspectiva, a mídia passou a ajudar o leitor a localizar e reconhecer o perigo, e se prevenir.
Dois exemplos significativos, foram publicados pelo JB de 18/06 e pela Veja Rio de 21/06. Ambos publicaram uma lista com as 11 linhas de ônibus, e respectivos itinerários, mais perigosas do Rio, cobrindo a cidade de ponta à ponta.
O JB publicou, neste dia, o caderno Cidade ampliado e exclusivamente sobre o tema. A lista foi encabeçada por 2 notícias com os seguintes títulos: “Roleta-russa nos ônibus do Rio – Estatísticas apontam para um número recorde de assaltos em coletivos no mês de maio: 819” e “Motoristas e os relatos do terror”. A Veja Rio intitulou a matéria como “O medo no caminho – Drama do 174 faz carioca se sentir mais inseguro ao viajar de ônibus”. Além da matéria e da lista, reforçando a idéia da paranóia, estampada em sua capa (já mostrada acima), a revista ofereceu uma espécie de “bula” para o usuário da cidade, revelando uma imagem do perigo rondando todos os trajetos: [fim da pág. 55]
Ainda no quadro dos desdobramentos, o “BASTA!”, publicado em primeira página nos jornais O DIA e EXTRA, de 13/06, foi transformado em “palavra de ordem” dos descontentes, reapropriada como chamada para uma marcha “pela paz”, realizada em 18/06, na cidade. O mesmo BASTA! foi mantido para campanha “Basta! Eu quero Paz”, coordenada pelo Instituto Sou de Paz, de São Paulo, e pelo movimento Viva Rio, do Rio de Janeiro que, já tem o apoio oficial de mais de 50 entidades em todo o país .
É possível, portanto, perceber como todos os espaços – durante e depois do acontecimento – foram ocupados discursivamente na mídia, informando e confortando o (tele) espectador/leitor, ávido por se posicionar diante do que havia presenciado, como voyeur.
Esse “voyeurismo”, quase compulsório, com que a maioria dos (tele) espectadores se deparou, diante daquele espetáculo, naquele dia, pode ser categorizado como uma verdadeira extravagância mediática: “A lógica do espetáculo comandando em toda parte as exuberantes e diversas extravagâncias da mídia” .
Segundo G. Débord, um espetáculo não seria o simples conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens. O espetáculo sendo, então, percebido, não simplesmente como o abuso de um mundo de visão, mas como uma visão de mundo que se objetivou. E, no caso do “174”, objetivado como a síntese e explicitação da totalidade da [fim da pág. 56] violência carioca que é construída, como já foi dito acima, cotidianamente pela própria mídia: assalto, ameaça de morte, tortura psicológica, arma, seqüestro, reféns, policia inepta, bala perdida, linchamento e mortes. Tudo ao vivo e a cores para todos os cariocas, ao mesmo tempo.
Pela sua dimensão temporal e impacto, provocou maior reação social do que acontecimentos que necessitam de uma reiteração cotidiana para se consolidarem. Parecia ser o TUDO que acontece na cidade TODA, o tempo TODO. E foi este o “TUDO” dos dias subseqüentes, permeando e preenchendo os jornais, as rádios e a TV, com noticias, reportagens, debates, opiniões, charges. Houve uma verdadeira invasão na mídia, durante quase uma semana.
O acontecimento transformado em espetáculo pinçado, pela própria mídia, do contexto sócio cultural da cidade, que articulou um discurso remetendo para o fato em si, reduziu-o a uma desastrada atuação policial com morte de uma refém. Desta forma, é possível observar um funcionamento discursivo que estimula o reconhecimento do acontecimento através de um certo fascínio pela superficialidade , valorizando apenas o que pôde ser visto.
Assim, a segurança pública, reduzida discursivamente ao mero despreparo da polícia, tomou conta dos principais debates, desembocando no anúncio oficial, na mesma semana, de uma “Política Nacional de Segurança” que, segundo a própria imprensa, “só terá efeito depois do governo FH” . Este plano de “superfície”, que veio como resposta às duas mortes perpetradas pela policia, seguidas de grande comoção e indignação social, se transformou, no discurso oficial, na mais importante política pública para as cidades brasileiras, no momento, como grande freio do crescente processo de violência no País . Desta forma, o estímulo ao reconhecimento do acontecimento apenas pela sua dimensão superficial – o fato em si, consolida discursivamente a hiper valorização de uma certa política de segurança, em detrimento de políticas estruturais (educação, saúde, saneamento, etc) que, na [fim da pág. 57] verdade, são as verdadeiras políticas preventivas da violência.
Em uma cidade com significativa parcela da geração de seus recursos dependente de sua imagem externa e de suas belezas naturais, tendo portanto também uma parcela significativa do setor terciário voltado para o turismo, do ponto de vista das classes investidoras não seriam, necessariamente, o pleno emprego , a educação ou a saúde, as prioridades políticas fundamentais. O discurso da imprensa sobre a atuação do “Mancha” responde, assim, a estas expectativas econômicas.
Diante das cenas mostradas para o mundo , que revelaram os crescentes níveis da violência na cidade e a péssima performance da polícia carioca, o discurso que promete a garantia de segurança pessoal e coletiva, certamente, passa a ser considerado como determinante para a recuperação da credibilidade externa, aliada a um revigoramento econômico, para que o Rio não deixe de ser “O RIO”.
Neste processo, foram as diferentes imagens de representação da [fim da pág. 58] cidade, por repetição e através de novos signos, que se transformaram em novos ícones de identificação urbana, se constituindo como elementos capazes, talvez, de alterar sua identidade no imaginário social. Como Mancha e manchas que se confundem e superpõem.: a mancha viária sobre a mancha urbana e o Mancha “Sobrevivente”, como lugares e sujeito da violência que mancham a imagem carioca.
Esta análise certamente mostra como cada vez mais o “conhecimento do real” se dá, predominantemente, através dos signos midiatizados pelos meios de comunicação.
Na intermediação desse acontecimento, o “seqüestro no Jardim Botânico” foi então ofertado como espetáculo de visibilidade total, como uma excepcionalidade, em tempo real. Foi assim que a TV o configurou como espetáculo inédito de violência, comoção social e representação da cidade do Rio de Janeiro, sintetizando ali “todas” as formas das “suas” violências diárias, alterando o sentido do reconhecimento de grande parte de seus tradicionais ícones de representação estética, ou turística (Corcovado/Cristo Redentor, Pão de Açúcar, Praia de Copacabana, etc). Desta forma, fortalecendo discursivamente um sentido que produz uma nova identidade no imaginário social, aponta a transformação da “cidade maravilhosa”, em “cidade extremamente perigosa”, o que ao invés de proporcionar, antes de mais nada, um espetáculo constituído de rara beleza, passa a proporcionar um espetáculo impar de terror e medo.
Assim, emergem dois Rios, duas Cidades, duas representações, que encantam e aterrorizam e que se confundem em um único CORCOVADO
Referências Bibliográficas
BOLTANSKI, L. (1993). La souffrance à distance: morale humanitaire, médias et politique. Paris, Éditions Métailié.
CALVINO, I. (1990). As cidades invisíveis. São Paulo,Companhia das Letras.
DEBORD, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto.[fim da pág. 59]
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HARVEY, D. (1992). A condição pós moderna. São Paulo, Loyola.
NUNES, G. (1995). Sobre a noção do mercado de referencialidade. Comunicação ao I Congresso Latino-Americano de Semiótica , São Paulo, PUC.
Periódicos
Revista Veja e Veja Rio, ed. de 21/06/200 e edição on line
Revista Isto é, ed.de 21/06/2000, e edição on line
Revista Época, ed. de 19/06/2000 e edição on line
Jornal O GLOBO de 13/06/2000
Jornal EXTRA de 13 e 14/06/2000
Jornal O DIA de 13 e 14/o6/2000
Jornal do Brasil – edições publicadas entre 13 e 21/06/2000
Folha de São Paulo – edições publicadas entre 13 e 21/06/2000
Arquivo Eletrônico do Jornal do Brasil: JB on line Pesquisa, disponível na Internet via: http://www.jb.com.br , consultado em junho/2000-06-30. [fim da pág. 60]