Ruas e praças ganham donos
Publicado em 14 de Julho de 2002 – Jornal do Brasil
Através de comodato, áreas públicas são fechadas e têm passagem controlada por seguranças:
O gradeamento tem redesenhado quarteirões e incorporado áreas além dos limites legais. Em Ipanema, Leblon, Lagoa e Barra da Tijuca, grades circundam prédios residenciais, avançando a fachada e a área privativa dos moradores. Garagens cercadas sobre as calçadas, ruas privatizadas, quarteirões inteiros redesenhados. Este cenário, muitas vezes construído com o aval da prefeitura, ilustra a conclusão do estudo de dois anos da professora Sonia Ferraz, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio. A pesquisadora da Universidade Federal Fluminense avaliou a arquitetura do Rio frente à violência e concluiu que, mais do que alterações estéticas, a insegurança sentida por parte dos cariocas tem um custo para o resto da sociedade. ”É impressionante a apropriação de terrenos público”, afirma Sonia, que teve a ajuda de quatro estudantes de arquitetura para o trabalho comparativo entre Rio e São Paulo.
Um exemplo marcante da apropriação do espaço público existe na Barra da Tijuca, onde uma extensa área de casas forma dois condomínios, no número 327 da Rua Gastão Senges. Duas ruas que levam à Avenida Prefeito Dulcídio Cardoso, a Hélio Maurício e a Hilton Santos atravessam o conjunto de residências, que foi cercado após termo de comodato assinado com a prefeitura, em troca da manutenção das vias. As ruas foram fechadas e têm controle de passagem feito por seguranças privados, que não permitiram a entrada da reportagem do Jornal do Brasil. Durante a pesquisa, as bolsistas também foram impedidas de entrar. Sonia lembra que, nas praias de Ipanema e Leblon, as calçadas são diminuídas e a população precisa se desviar das grades. A prefeitura permite o gradeamento, desde que seja preservado o passeio público – 10 metros a partir do meio-fio – informou a Gerência de Licenciamento e Fiscalização local.
Advogado especializado em direito administrativo, Luiz Paulo Viveiros de Castro afirma, porém, que a legislação não permite que o governo municipal aja desta forma. ”A prefeitura só pode ceder uma área pública para um condomínio se for permitido o uso da mesma pela população. Caso contrário, trata-se de uma privatização”, explica. Segundo ele, o artigo 37 da Constituição Federal determina que a cessão de uma área cujo uso será restrito necessita de processo de licitação. ”Trata-se do princípio de igualdade de oportunidades. É como se fosse um aluguel e por isso é preciso que haja licitação”, observa. Luiz Paulo diz ainda que o termo de permissão de uso também é possível quando há interesse público ou social na utilização da área.
Prédios cariocas imitam presídios
Enquanto mansões de São Paulo imitam a arquitetura medieval com seus castelos cercados por muros cobertos por garfos horizontais os projetos arquitetônicos cariocas imitam presídios. É o que considera a arquiteta Sonia Ferraz, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em estudo sobre violência e arquitetura. Com janelas minúsculas, de fechamento de cela, interfones e câmeras de vídeo intercalando portões, o número 3.964, em frente à Lagoa, na Avenida Epitácio Pessoa, e com vista possível para o Cristo Redentor, reproduz a idéia de prisão.
Outro exemplo das semelhanças entre presídios e residências são os solários, usados em prisões e definidos como um lugar aberto e gradeado para se tomar sol com segurança. No Rio, eles existem em bairros nobres como Leblon, no quarteirão que vai do 310 ao 450 da Rua Bartolomeu Mitre. “Quando há sol forte, ornam-se ambientes mais opressores do que as celas”, diz Sonia.
Prefeitura aluga campo de futebol
A prefeitura do Rio concedeu, há quase três anos, uma área pública de mais de 10 mil metros quadrados na Avenida das Américas ao Condomínio Riviera dei Fiori. Na cláusula quinta do Termo de Permissão de Uso que regulamenta o comodato, o ítem B determina que cabe ao permissionário (no caso, o condomínio) não permitir que terceiros utilizem a área no todo ou em parte, a qualquer título. Pela ocupação da Praça Gilson Amado, o Condomínio Riviera dei Fiori paga taxa mensal de 962, 12 Ufirs (aproximadamente R$ 1.167). O contrato também determina que a conservação e a guarda da área – onde há um campo de futebol e um monumento indicador – ficam a cargo do Riviera. ”Qualquer um que tenha pretensão de usar o campo, tem que pedir permissão ao condomínio”, explica a gerente Marinilda de Oliveira.
O campo de futebol – que estava trancado com cadeados quando a equipe do Jornal do Brasil visitou a área – foi reformado recentemente e ganhou alambrados novos e grama da Fundação Parques e Jardins. O secretário municipal de Meio Ambiente, Pedro Paulo Carvalho Teixeira, disse não conhecer o Termo de permissão de Uso e garantiu não haver a possibilidade de proibição do uso público. ”Se isto estiver acontecendo, cancelo no ato o artigo. Afinal, não teria sentido investirmos numa área privada”, declara Pedro Paulo.
O secretário disse ainda que as melhorias foram feitas a pedido dos moradores e o campo está fechado para evitar que o gramado seja danificado. ”O que podemos fazer futuramente é um termo de adoção com o Riviera, mas mesmo assim qualquer cidadão poderá utilizar aquela área”, conclui. Marinilda alega, porém, que o local já foi concedido ao condomínio há muitos anos. O termo foi apenas renovado em 1999, segundo a gerente do Riviera. A Superintendência de Patrimônio da Secretaria Municipal de Fazenda informou que o contrato é válido até 2009.