Abuso de autoridade, invasão de espaço público e falta de respeito até mesmo em filas revelam o pior lado do jeitinho brasileiro
Publicado em 26 de julho de 2002 – Revista Isto É
Por Chico Silva e Eliane Lobato
Colaboraram: Sônia Filgueiras e Marcos Pernambuco
Brasileiro e malandragem são duas coisas quase indissociáveis. Mas enquanto o indefectível jeitinho ficava restrito às rodas de samba e aos gramados, tudo bem. O problema é que de uns tempos para cá o que era até uma qualidade vem se transformando em uma praga. O “sabe com quem está falando?” cada vez mais se incorpora ao cotidiano do País. Antes restrito às elites, agora está até na boca de celebridades recém-criadas em reality shows. Recentemente, Carol Zawadzki, hostess da boate Baronetti, em Ipanema, no Rio de Janeiro, encarou uma carteirada de uma delas. Uma moça loira tentou furar uma fila enorme chamando-a num canto para dizer: “Eu sou a Xaiane do Big Brother. Não vou entrar?”, disse a moça, uma das primeiras eliminadas do BBB 1. A hostess, disse: “E eu sou a Carol do Baronetti. Espere na fila, por favor.” Respostas como esta e atitudes corajosas como a que teve a guarda municipal carioca Rosimeri Dionísio, que levou uma carteirada do desembargador Eduardo Mayr após multar o carro do filho dele, lavam a alma dos que pregam e lutam por um País mais justo. Mesmo agredida e constrangida, ela cumpriu seu dever. Ao desembargador da 7ª Câmara Criminal, coube a torpe decisão de fazer registro de ocorrência contra a guarda por desacato a autoridade e abuso de poder, quarta-feira 10. Mesmo com a péssima repercussão da atitude do desembargador, ele ainda foi homenageado num ato de desagravo que reuniu 280 juízes e desembargadores na Escola de Magistratura.
Parece mas não é: É Guarita dá ares de
área particular à rua que leva ao condomínio
Colinas de São Francisco, em SP. Em seu
interior, há um parque municipal .
País personalizado – Esses episódios não chocam o antropólogo carioca Roberto DaMatta, autor do ensaio Sabe com quem está falando?, no livro Carnavais, malandros e heróis. “O Brasil é, hoje, um país personalizado”, afirmou. Ou seja, todo mundo quer ser alguma coisa para, assim, escapar dos limites das leis. Para ele, a figura da “pessoa estruturante” – o poderoso – existe em todos os grupos sociais. “Nos bairros pobres, alguém é “o home”, aquele que manda e tudo pode”, diz. Os moradores do edifício Adolfo Esquivel são a prova de que o antropólogo está certo. O condomínio está localizado no Jardim Umuarama, bairro classe média baixa da zona sul de São Paulo. Em 1997, os condôminos resolveram simplesmente anexar um terreno localizado ao lado do edifício. Detalhe: a área pertence à prefeitura da cidade. Eles construíram um muro, um pequeno campo de terra batida e uma pista onde as crianças andavam de bicicleta e patins. Para completar o serviço, derrubaram a parede que separava o prédio do novo miniparque de diversões “particular”. Tudo ia bem até o início deste ano, quando a Arquidiocese do Campo Limpo foi à Administração Regional do bairro requisitar a cessão da área. A intenção dos religiosos é facilitar o acesso das crianças que vivem próximas às novas instalações da igreja, onde funcionarão uma creche e um centro comunitário. Ao fazer uma pesquisa do local, a prefeitura tomou conhecimento da invasão. “Eu sei que todo mundo está errado nessa história. Mas o engraçado é que só lembraram dessa área depois das melhorias que fizemos”, reclama Nilva Lopes da Silva, 38 anos, integrante da Associação dos Moradores do Adolfo Esquivel. A prefeitura já avisou que vai retomar o terreno e devolvê-lo aos seus donos, os moradores do bairro.
Invasão: Em SP, condôminos se
apropriaram de terreno da prefeitura
A invasão do espaço público parece ser o exemplo mais gritante da arrogância embutida na lei de Gérson (aquela de quem gosta de levar vantagem em tudo, certo?). A pesquisa Arquitetura da violência, realizada no Rio de Janeiro e em São Paulo sob a coordenação da arquiteta Sonia Ferraz, professora da Universidade Federal Fluminense, é um flagrante dessa perversidade. O trabalho, iniciado em 2000, chega ao fim com cara de dossiê de impunidade. “Há um crescimento avassalador da apropriação do espaço público e atribuo isso à crise ética e à impunidade. Não existe coletivo; prevalece o ‘que se dane o resto’. Onde tem poder econômico ou político, tudo pode”, diz Sônia.
Parece mas não é: É Guarita dá ares de
área particular à rua que leva ao condomínio
Colinas de São Francisco, em SP. Em seu
interior, há um parque municipal .
Na análise da pesquisadora, os bairros de elite de São Paulo se assemelham a cidades medievais, com muros extremamente altos e aparatos de segurança que muitas vezes invadem o espaço público, como a guarita, a cancela e até o fechamento de ruas. O luxuoso condomínio Collinas de São Francisco, na zona oeste de São Paulo, praticamente se apoderou de um logradouro público para garantir a segurança e comodidade de seus moradores. Na “entrada”, seguranças particulares anotam placas dos carros que acessam o local. Nos postes da rede pública de energia há aquelas malfadadas placas, comuns em shopping centers, lojas e supermercados. “Sorria, você está sendo filmado”. Para completar, no interior do condomínio há um belíssimo parque municipal. O problema é que não há nenhuma indicação ou aviso de que a área verde está à disposição da comunidade. O único acesso ao parque é pela entrada da rua vigiada 24 horas por funcionários de uma empresa de segurança. “Não proibimos ou cerceamos o acesso de qualquer pessoa ao parque ou ao condomínio. Nosso único cuidado é oferecer segurança aos moradores. Não vejo nenhum mal nisso”, diz Odair Senra, diretor de incorporações da Gafisa, a construtora do conjunto. Essa não parece ser a opinião da prefeitura. Ao ser informada por ISTOÉ da existência de guaritas que afunilam e dificultam o tráfego na via pública, a Administração Regional do Butantã, responsável pela região, prometeu a retirada e desobstrução do logradouro e também das calçadas ocupadas pelo aparato de segurança.
Pistolões – O combate a esse tipo de delito é um desafio rotineiro para os órgãos municipais. Os que não entram em esquemas de suborno passam por problemas sérios. É o caso de Evaldo Gomes dos Santos Filho, 39 anos, 13 dos quais como policial de controle de trânsito nos arredores da praça General Osório, em Ipanema. “Carteirada? Era frequente…”, diz o policial, aposentado aos 38 anos após levar um tiro no braço direito em um assalto. Ele seleciona a história de Agnaldo Timóteo, atualmente incomunicável no programa Casa dos artistas 3, do SBT. O cantor e então vereador estacionou o carro em local proibido e, ao se ver multado por Evaldo, ligou para o 23º Batalhão para denunciar o guarda. “O comandante Soares (na época comandante do referido Batalhão) mandou que eu liberasse o carro e eu disse não. Mantive a multa e fui repreendido”, lembra.
Comigo não: Rosimeri desafiou o desembargadorEduardo Mayr e
multou o carro de seu filho
Assim como o guarda Santos, quem ousa desafiar o jeitinho brasileiro, sofre. É o caso de Horácio Magalhães Gomes, presidente da Sociedade dos Amigos de Copacabana, na zona sul do Rio. Ele já perdeu os cabelos de tanto lutar. “Eu recebo reclamações de todos os tipos. Os casos mais comuns são os de invasão do passeio público por grades, pisos e até bancos impedindo a passagem dos pedestres.” Ele já deu entrada em cerca de 50 processos de invasão e gradeamento das calçadas, todos sem efeito. Segundo ele, as interferências de “pistolões” acabam desviando o rumo dos processos, tornando-os nulos. “Sou advogado e sei que os critérios para indeferir ou deferir meus pleitos são subjetivos, dando margem aos absurdos que estão sendo cometidos. A lei não é cumprida”, constata. Ele alerta para o perigo da desordem generalizada em virtude do medo dos moradores diante das pessoas influentes. “Se a prefeitura não regulamentar de uma forma objetiva a questão das grades, a cidade vai se tornar caótica. A violência acelera o cercamento desordenado e ilícito e a incorporação do espaço público ao patrimônio dos condomínios. “Desse jeito vamos acabar enjaulados”, disse Gomes.